Um velho edifício apodrece no coração de uma aldeia rasgada ao meio por uma estrada onde os carros já não param. O realizador Filipe Araújo quis desvendar os mistérios por detrás do antigo epicentro da terra. O Casarão, documentário de criação sobre aquele que foi o mais progressista seminário católico português durante a ditadura, é o resultado
Não raras vezes, para me adormecer, o meu pai efabulava a partir de histórias reais do seu passado. De todas, a mais enigmática tinha como cenário um território povoado por miúdos e homens de branco. Uma enorme casa sem electricidade nem águas correntes, entalada num vale rodeado de florestas. Foi depois da sua morte que uma inexplicável pulsão me conduziu até esse lugar.
E dessa pulsão de Filipe Araújo nasce O Casarão, que chegou aos cinemas a 18 de novembro, depois de uma antestreia na Casa do Cinema, em Coimbra, no contexto do Caminhos do Cinema Português. O filme, recordista de espectadores no Cinema City Alvalade durante a sua primeira semana em cartaz, desvenda o papel que o antigo seminário dominicano de Aldeia Nova teve nas vidas dos muitos rapazes que passaram pelas suas salas e corredores, e o destino que agora poderá ter.
No curso das ditaduras do século XX e ressaca das Grandes Guerras, o acesso ao conhecimento sistematizado para os estratos baixos da sociedade e nos contextos rurais, onde se encontrava o grosso da população, era praticamente nulo. Havia, contudo, duas exceções: a oferecida pela profissionalização militar e a via religiosa — encaradas como um dos raros passaportes para uma vida melhor. Foi esse o caminho percorrido pelo pai de Filipe Araújo, professor universitário e investigador científico, precocemente falecido. Nascido no seio de uma aldeia minhota, foi o único dos cinco irmãos a seguir os estudos. Conta que o fez aliciado pelo prior da terra, que lhe acenou com as mais excitantes disciplinas do saber, apresentando-lhe a vocação religiosa como um “dom para melhorar o mundo”. Tinha 10 anos quando ingressou no seminário de Aldeia Nova.
“A premissa deste projeto nasce da vontade de colocar em diálogo dois Portugais separados por um intervalo de meio século e ligados através de um mesmo edifício. É, portanto, um filme sobre finais de ciclo, mas também sobre um paradoxo. No caso, o paradoxo que é, em plena ditadura salazarista e num lugar carregado de isolamento, a “descoberta da liberdade” por parte de um grupo de pré-adolescentes a preparar-se para algo que nunca viria a ser”, explica Filipe Araújo, para quem a realização do documentário constituiu uma oportunidade de levantar o véu não apenas sobre um imóvel com história caído no esquecimento, como também sobre a improvável experiência feliz de mais de uma centena de vidas construídas entre dois mundos: o religioso e o secular.
Com esse propósito, O Casarão convida-nos a acompanhar a passagem de testemunho do antigo seminário através de António, caseiro do edifício desde o tempo dos padres, recuperando paralelamente as memórias dos seminaristas por intermédio de cartas, diários e textos dispersos entretanto reunidos.
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